sábado, 31 de março de 2018

Areia


O cheiro de putrefação passeia pelos cômodos
Vai entranhando todas as coisas
Tomando conta da alma
Tornando se comum

O lixo cai pelos cantos
Em sacolas mal fechadas de supermercados daqui
No final de semana um churrasco
Um peixe na páscoa

No corredor que liga nossas casas
Nossas vidas
Nossa humanidade
E nossas diferenças...
Mereja o esgoto da caixa de gordura

É, eles podiam fazer alguma coisa...
É, alguém poderia fazer alguma coisa...
Talvez em um final de semana eu chamasse um deles
E ajudasse a limpar sua caixa de gordura
Mas já não importa
Eles sabem disso muito antes de mim

Não importa também o cachorro
Acorrentado o dia inteiro
E seu latido triste
Não importa a ignorância
A grosseria
A falta de perspectiva
Os brados com o acorrentado

Talvez o melhor seja saber o que ainda resta
Nos escombros dessas vidas
Na dilaceração dessas existências 

Em comum carregam a saudade de um lugar
Para onde pretendem voltar
Um certo orgulho arrogante
E o medo de enxergar...
De que alguém lhes diga
Arrancando o véu que esconde as portas dessa caverna
Que algo se perdeu
Que de vida existe muito pouco nisso tudo

E assim se morre antes de nascer
No coração do Brasil
Imensa grandeza geográfica desértica
Em que almas sedentas mastigam arreia





quarta-feira, 14 de março de 2018

Olhos de vidro


Não sei em que momento isso se quebrou 
Até que ponto tinha conserto 
Sei menos ainda quando isso se calcificou 
Não sei o quanto de lenda e de realidade carrega essa história 
Não sei se ainda luto pelos anjos ou se já estou caído
Minha razão pode estar comprometida
Ou pode ser a completa lucidez 
Que desemboca em desespero
Não sei 

Isso tem sido sobre caminhar e viver 
Felicidade é outra coisa 
Culpando-se e punindo-se
Perdido em crenças medievais 
Tentando acender a luz 
Mas por todos os lados existem quartos escuros 

Isso aqui é muito frágil 
Muito medroso 
Viu o inferno 

Não trabalha com a hipótese 
Com o cinza
Isso é o Direito 
Só tenta ser justo 
Ser certo
Se aconchega no estável
No seguro



Alguma coisa que seja


Converti liberdade em solidão 
Converto dia a dia
Vou desaparecendo aos poucos 
Pedaço por pedaço 
Parte por parte 
Em cada pequena coisa 
Cada livro com dedicatória 
Presentes
Memórias
Até que um dia eu possa sumir por completo 
Me desencontrar de mim mesmo 
Me desfazer de tudo que me lembra eu, nós, todo mundo

Nas recordações de quem existiu ao meu lado 
Espero que reste um sopro de vida 
De inquietação
Que esse fantasma possa suscitar a crença 
A possibilidade de encher de ar os pulmões 
E inalar alguma coisa que pulse
Que seja vida 



Vidro


Isso é  como um conto do  Borges 
Isso é o que eu tenho conseguido aguentar
Vou despedaçando essa febre 
Fugindo dos medos 
Quebrando os espelhos 

É a história do homem 
Combatendo seu arquirrival
Incansável nessa tormenta 
Não vê seus olhos 

No último ato o demônio tira sua máscara
E ele se vê
Seu contrário espelhado
Corta-se em mil pedaços 
Com retalhos de vidro
Ele quebra cada parte 
Sua imagem se multiplica 
Suas mãos já cansadas 
Vermelhas 
Sangrando vão esmiuçando cada caco
Para que se tornem pó


Mas não acaba nunca...
Tem o poder de se multiplicar 
São milhares de imagens de si 
Ele é vidro
Ora transparente
Ora espelhado
Ele é vidro
Ora blindado
Ora quebrado
Ele é vidro
Uma liga de areia forjada no fogo